quarta-feira, 29 de junho de 2016

Batendo na Porta Aberta — Herman Schmitz (Conto)

Ilustração de Marcelo Galvan


Batendo Na Porta Aberta

Herman Schmitz



Memorando nº 000278 

Ao Senhor Presidente da comissão de Investigações do Senado

Assunto: possível destruição da nossa realidade por seres alienígenas



Tendo em conta o alarde que hoje se faz na imprensa do nosso país a respeito do estranho sumiço do professor Martins Fontes e da sua máquina dimensional, quero, por meio deste memorando, relatar os fatos que acompanhei na condição de investigador subalterno da Borges & Berger Auditoria – sólida empresa mineira de consultoria e auditoria de projetos que foi contratada, de maneira especial, para acompanhar os assuntos relacionados à reposição de peças na construção da denominada máquina dimensional; projeto de cunho secreto das Forças Armadas Brasileiras, representado nas pessoas do General Morais e do eminente matemático e professor Martins Fontes, criador da máquina e chefe da divisão de engenharia do exército, especialmente criada para construí-la.

Desde os tempos do filósofo grego Pitágoras de Samos que os matemáticos são vistos com desconfiança, mas desta vez as suspeitas se concretizaram.

Logo que me vi na Base Militar de Itapetinga, no interior da Bahia, eu percebi que as coisas não andavam como de costume. Veja bem, contratar uma empresa de auditoria de Belo Horizonte para acompanhar uma construção secreta em outro estado, com peças vindas de São Paulo, envolvendo quilômetros de distância, parece agora intencionalmente malicioso no sentido de dificultar essa mesma auditoria.

Além disso, contei mais de vinte falhas de segurança, tanto no transporte como no armazenamento desse material. (Ver o memorando 000125.)

Outra falha crítica, a meu ver, foi a ausência nessa tarefa de outros matemáticos envolvidos com o projeto ou, pelo menos, de uma equipe de supervisão com conhecimento técnico. O controle direto de um projeto dessa natureza, atribuído ao professor Martins, foi obviamente consequência de algum ardil do próprio professor quando da negociação do projeto.

Custou-me muito tempo saber do que se tratava realmente o projeto. O General Morais me passava as listas de reposição sempre com o cenho franzido, uma espécie de mau humor que dissuadia qualquer tentativa de entendimento. Somente quando tive acesso ao professor Martins Fontes é que a ideia do todo tomou forma.

Segundo a teoria – que o próprio professor fez questão de me demonstrar –, com essa máquina dimensional se poderia transformar qualquer material, inclusive pessoas, alterando suas dimensões espaciais ao ponto de se poder achatar, por assim dizer, à espessura zero qualquer material e depois poder restituí-lo ao formato original.

Lembro claramente do professor comentando as vantagens militares de seu invento:

— Com a máquina dimensional, João Carlos, o Exército Brasileiro vai poder atravessar as fronteiras como se fosse um pelotão impresso numa folha de papel, que deslizará por baixo da porta do inimigo e do outro lado se materializará com todo o seu armamento.

Tendo eu uma natureza pacata e mineiramente tranquila, achei exagerada a conversa tipicamente militar em um ilustre matemático e imediatamente me precavi de que algo se passava.

A cada encontro nosso, a antipatia natural aumentava perante os delírios megalomaníacos a que o professor se entregava. Achava eu, na época, que o professor, de certa maneira, forjava essa personalidade belicosa somente para agradar aos militares que o estavam financiando.

Hoje, quero retificar neste memorando que a trama engendrada pela mente doentia do professor o levou a burlar os militares com esse circo, mas, ao mesmo tempo, estava relacionada às suas descobertas da existência de seres insuspeitos nas regiões unidimensionais do espaço.

Como todos os meus colegas de trabalho nesse ramo de auditoria, não somos muito loquazes, portanto o professor apreciava muito as minhas visitas, pois elas satisfaziam a sede de glória por suas descobertas, que pelo caráter secreto do projeto ele não poderia tornar públicas.

— Os geômetras, João Carlos, existem apenas nas dimensões mais básicas da geometria. Eles são segmentos perfeitos de pontos, destituídos de volumes e de detalhes e veem o nosso universo tridimensional como uma dimensão extra na sua realidade. Desse modo, a nossa relação entre eles é do quadrado elevado ao cubo. Pelos meus cálculos, eles poderiam utilizar esta nossa dimensão como uma dimensão extra e extrair toda a sua necessidade de energia da nossa dimensão. O nosso universo, para esses seres, representa apenas combustível grátis, e se eles nos descobrirem, nos queimarão como lenha e o nosso fim será no fogo do inferno como já predisse Nostradamus.

Na época, me pareceram deduções extravagantes essas, influência do ambiente de alto segredo que rodeia esse tipo de instalação militar.

Não sei precisar quanto o Alto Comando sabia das descobertas do professor. A atitude arrogante do General Morais em relação aos meus trabalhos dificultou em muito as nossas trocas de opiniões sobre o projeto. E quero enfatizar que sempre fui visto com desprezo e como um mal necessário ao desenvolvimento dessa máquina.

Essa atitude tomou uma forma mais polêmica quando enviei o memorando 000180, no qual ressalvo que as peças requisitadas pelo General Morais estavam muito acima do que seria permitido conceder ao projeto. A minha ignorância da engenharia e da matemática do projeto foi utilizada como contra-argumento e o caso foi desconsiderado.

Porém, desde aquela época e ainda hoje – temos as faturas para confirmar –, percebe-se claramente que se estava construindo duas máquinas absolutamente iguais, disfarçadas nos pedidos que se replicavam de quando em quando. Havia sempre o argumento de falhas mecânicas, mas quando investiguei – por minha conta, diga-se de passagem – o destino das peças estragadas, topei com um esquema de reciclagem que aparentemente servia apenas para camuflar o fato de não haver tantas perdas assim. (Ver o memorando 000220.)

Quando se iniciaram os testes com a máquina, a paranoia militar por segurança atingiu o apogeu, dificultando mais uma vez o acesso de pessoas mais responsáveis na avaliação dos primeiros resultados. Novamente o professor iludiu as autoridades, fechando-se no laboratório e realizando pessoalmente as primeiras viagens dimensionais.

A culpa de hoje não podermos reproduzir a máquina criada pelo professor foi desse excesso de segredo, pois agora não possuímos nem mesmo um filme ou sequer uma fotografia da máquina construída. Temos as listas com o material necessário, mas não o esquema de montagem, e, desse jeito, pode ser muito tarde quando se venha a acertar na loteria.

Senhor Presidente, espero que a simples vista dos relatórios reordenados por mim, no anexo 07 do memorando 000277, possa eliminar qualquer dúvida em relação à atitude premeditada do professor para duplicar a sua máquina e transportá-la para outra dimensão – na qual ele se encontra agora –, e depois, numa atitude covarde e egoísta, raptar a sua primeira máquina por meio da porta dimensional, deixando-nos à mercê desses seres que agora poderão nos utilizar como combustível para alimentar as suas caldeiras ou sabe-se lá o que mais.

Deixo aqui, portanto, o meu apelo no sentido de tornar público essa situação, bem como para encorajar outros grandes matemáticos do nosso país a se debruçarem nas teorias dimensionais e tentarem encontrar esses seres – os geômetras –, seja lá onde estejam, para impedir o extermínio total de nossa realidade, pois as portas que nos ligam a eles estão todas abertas.




Atenciosamente,
João Carlos de Oliveira, ex-auditor da Borges & Berger Auditoria

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Conto presente no livro TERRASSOL (c) 2014 de Herman Schmitz.