Arthur C. Clarke - Todo o Tempo do Mundo (Conto Longo)

TODO O TEMPO DO MUNDO
Arthur C. Clarke (c) 1952



Quando a tranquila batida ressoou na porta, Robert Ashton inspecionou a sala num movimento rápido e automático. Sua austera respeitabilidade deixou-o satisfeito e devia inspirar confiança a qualquer visitante. Não que tivesse alguma razão para esperar a polícia, mas não havia sentido em arriscar-se.
- Entre - disse ele, esperando para pegar os Diálogos de Platão numa prateleira ao lado. Talvez o gesto fosse um tanto aparatoso, mas sempre impressionava os clientes.
A porta abriu-se lentamente. A princípio, Ashton empenhou-se numa leitura atenta, não se preocupando em erguer os olhos. Sentiu o coração acelerar-se ligeiramente e um suave e até certo ponto estimulante aperto no peito. Naturalmente não era possível que fosse um tira, alguém lhe teria dado o aviso. Contudo, um visitante não anunciado era coisa incomum e, portanto, potencialmente perigoso.
Ashton pousou o livro, relanceou a porta com os olhos e disse com um tom de neutralidade na voz:
- Em que lhe posso ser útil?
Não se levantou. Tais cortesias pertenciam a um passado que há muito já tinha enterrado. Além disso, era uma mulher. E nos círculos que ele agora frequentava, as mulheres estavam acostumadas a receber jóias, roupas e dinheiro - mas nunca respeito.
Com aquela visitante, no entanto, havia alguma coisa que lentamente fez com que ele se erguesse na ponta dos pés. Não era apenas o fato de ser bonita. Ela possuía uma autoridade que se revelava naturalmente no porte e na atitude, que a situava num mundo diferente do mundo das amásias floridas encontradas no curso, normal dos negócios. Havia um cérebro e uma vontade atrás daqueles olhos calmos e indagadores. Um cérebro, Ashton suspeitou, igual ao seu.
Mas ele não poderia imaginar quão grosseira mente a estava subestimando.
- Sr. Ashton - ela começou -, não percamos tempo. Sei quem é o senhor e queria um trabalho seu. Aqui estão minhas credenciais.
Abriu uma sacola grande e elegante, de onde tirou um grosso maço de notas.
- Pode encarar isso - disse ela - como amostra.
Ashton apanhou a quantia que negligentemente lhe foi atirada. Era a maior soma de dinheiro que já pegara em sua vida: uma centena, pelo menos, de notas de cinco libras, todas novas e numeradas em série. Procurou-as sentir entre os dedos. Se não fossem verdadeiras, eram de tão boa qualidade que a diferença praticamente não tinha importância.
Deixou o polegar correr para cá e para lá ao longo da bolada, como se procurasse sentir as cartas de um baralho marcado, e disse pensativa mente:
- Gostaria de saber como as conseguiu. Se não são falsificadas, devem ser
roubadas, e vai ser difícil passar todas elas.
- São verdadeiras. Mas há muito pouco tempo estavam no Banco da Inglaterra. Se não têm utilidade para você pode queimá-las. Só quis mostrar que tenciono negociar.
- Vá em frente.
Fez um gesto para que ela se sentasse na única poltrona da sala e se empoleirou na beira da escrivaninha.
A visitante tirou um pacote de papéis da ampla sacola e entregou-os a ele.
- Estou pronta a pagar o que quiser se conseguir me arranjar o que está nessas listas. Você me passaria o material em hora e lugar a combinar. E tem mais. Vou lhe dar garantias de que poderá executar os roubos sem qualquer risco pessoal.
Ashton deu uma olhada na lista e suspirou. A mulher era louca. Melhor, contudo, manter o bom humor. Podia sair mais dinheiro de onde saíram a lista e a primeira bolada.
- Estou reparando - disse amavelmente - que todos esses itens estão no Museu Britânico, e que a maioria deles, rigorosamente falando, são inestimáveis. Quero dizer que não podem ser comprados nem vendidos.
- Eu não pretendo vendê-los. Sou uma colecionadora.
- Assim parece! Quanto está pronta a pagar por essas aquisições? - Faça um preço.
Houve um breve silêncio. Ashton ponderou as possibilidades. Adquirira um certo orgulho profissional com o seu trabalho, mas havia certas coisas que nenhuma soma de dinheiro tornava realizável. Ainda assim, seria divertido ver até que ponto o lance podia chegar.
Examinou novamente a lista.
- Penso que um milhão redondo seria uma cifra muito razoável por este lote - disse ironicamente.
- Acho que não está me levando muito a sério. Só com os seus contatos, você poderia ter arranjado muito facilmente esta quantia.
Houve um brilho súbito e alguma coisa faiscou no ar. Ashton pegou o colar antes que ele caísse no chão. Apesar de seu autocontrole, foi incapaz de evitar uma exclamação de espanto. Uma fortuna lhe cintilava entre os dedos. Um diamante central era o maior que já vira, e devia ser uma das jóias mais famosas do mundo.
A visitante pareceu completamente indiferente quando ele deslizou o colar para dentro do bolso. Ashton estava extremamente impressionado; percebia que o desinteresse da mulher não era uma dissimulação. Para ela, aquela fabulosa gema não tinha mais valor que um torrão de açúcar. Isso era loucura numa escala inconcebível.
- Admitindo que você possa soltar uma bolada - disse ele -, acha que é fisicamente possível fazer o que pede? Podíamos conseguir roubar um dos itens da lista, mas dentro de umas poucas horas o museu estaria em peso com a polícia atrás de nós.
Já com uma fortuna no bolso, podia dar-se ao luxo de ser franco. Além disso, tinha curiosidade em saber mais alguma coisa sobre a fantástica visitante.
Ela sorriu um pouco tristemente, como quem estivesse se adaptando a uma criança retardada.
- Se lhe mostrar como fazer - disse brandamente - aceitará o serviço?
- Sim! Por um milhão!
- Notou alguma coisa estranha desde que entrei aqui? Não está tudo muito... quieto?
Ashton prestou atenção. Meu Deus, ela tinha razão! Nunca havia silêncio completo na sala, nem à noite. E havia sempre um vento soprando na cumeeira... Para onde ele fora agora? 0 barulho distante do tráfego cessara. E há cinco minutos estivera amaldiçoando as locomotivas, que trocavam de linha no pátio de manobras do terminal da estrada de ferro. Que acontecera com elas?
- Vá até a janela.
Obedeceu à ordem e afastou as cortinas de renda encardida, os dedos tremendo ligeiramente a despeito de todo o esforço para controlá-los. Mas então relaxou A rua estava completamente, vazia, como frequentemente acontecia naquela hora da manhã. Não havia tráfego e isso explicava a ausência de ruído. Em seguida, no entanto, seu olhar caiu sobre o alvoroço das casas enfumaçadas, voltadas para o pátio de manobras.
A visitante sorriu quando ele se enrijeceu com o choque.
- Diga-me o que está vendo, Sr. Ashton.
Ele virou-se lentamente, a face pálida, engolindo em seco.
- Quem é você? - disse arquejando. - Uma bruxa?
- Não seja tolo! Há uma explicação muito simples. Não foi o mundo que se transformou; foi você.
Ashton arregalou outra vez os olhos para a inacreditável locomotiva no desvio, a coluna de fumaça congelada, imóvel, como se fosse de fios de algodão. Percebeu ainda que as nuvens estavam também imóveis; deviam estar deslizando pelo céu afora. Tudo em volta dele tinha a imobilidade antinatural da fotografia, a nítida irrealidade de uma cena entrevista num faiscar de luz.
- Você é suficientemente inteligente para descobrir o que está acontecendo, mesmo se não pode entender como a coisa foi feita. Sua escala de tempo foi alterada: um minuto do mundo exterior seria um ano nesta sala.
De novo ela abriu a sacola. Tirou desta vez o que parecia ser um bracelete de algum metal prateado, com uma série, de mostradores e interruptores incrustados nele.
- Pode chamá-lo um dínamo pessoal - disse. - Com isso no pulso, você é invencível. Pode ir e vir livremente; pode roubar tudo o que está naquela lista e me trazer todo o material antes que qualquer um dos guardas do museu tenha piscado um olho. Quando tiver terminado o serviço, pode se distanciar quilômetros antes de desativar o campo magnético e reentrar no mundo normal. Mas ouça cuidadosamente e faça exatamente o que eu disser. O campo pessoal tem um raio de dois metros, por isso você tem de manter pelo menos essa distância de qualquer outra pessoa. Em segundo lugar, você não deve desligar o bracelete até que a tarefa esteja completa e eu lhe tenha dado o pagamento. Isto é muito importante! E agora, o plano que arquitetei é o seguinte...
Nenhum criminoso na história do mundo jamais possuira tamanho poder. Era inebriante, ainda que Ashton perguntasse a si mesmo se algum dia se acostumaria à ideia de que tudo isso de fato aconteceu. Mas já deixara de se preocupar com explicações - pelo menos até o serviço estar concluído e ele ter recebido a recompensa. Depois, talvez, fugiria da Inglaterra para desfrutar de uma aposentadoria bem merecida.
A visitante saíra alguns minutos na sua frente, mas quando Ashton desceu à rua o cenário mantinha-se inteiramente inalterado. Embora estivesse preparado para isso, a sensação ainda era enervante. Sentiu um impulso para apressar-se, como se fosse impossível que tal situação perdurasse, como se tivesse que fazer o serviço antes que a coisa saísse dos eixos. O que, no entanto, conforme lhe fora assegurado, não podia acontecer.
Na High Street diminuiu o passo para apreciar o tráfego imóvel, os pedestres paralisados. Seguindo o aviso que recebera, tomou cuidado para não chegar demasiado perto de ninguém que estivesse dentro do seu campo. Como as pessoas parecem ridículas quando são vistas desse jeito, despojadas do garbo que o movimento consegue proporcionar, bocas meio abertas em caretas idiotas!
Ter de procurar auxílio era contra a sua índole, mas algumas partes do serviço eram muito trabalhosas para ele executar sozinho. De mais a mais, podia pagar, generosamente sem nunca despertar suspeitas. A maior dificuldade, Ashton percebeu, seria encontrar alguém suficientemente inteligente para não ficar alarmado - ou tão estúpido para aceitar qualquer coisa como axioma, sem discutir. Decidiu tentar a primeira das possibilidades.
O estabelecimento de Tony Marchetti situava-se ao fundo de uma rua lateral, e tão perto do posto policial que qualquer um acharia que ele estava levando o despistamento longe demais. Atravessando a porta de entrada, Ashton pôde ver de relance o sargento de serviço na delegacia sentado imóvel em sua escrivaninha. Resistiu à tentação de ir até lá para combinar um pouco de prazer com os negócios. Mas esse tipo de coisa podia esperar até mais tarde.
A porta do gabinete de Tony escancarou-se na sua frente quando ele se aproximou. Era uma ocorrência tão normal, num mundo onde nada era normal, que Ashton se pôs a imaginar o que aconteceria se o dínamo deixasse de funcionar. Deu uma rápida olhada na rua, mas tranquilizou-se com a imobilidade do quadro atrás de si.
- Mas não é possível! Bob Ashton por aqui! - disse uma voz familiar. - É incrível encontrá-lo assim tão cedo, de manhã! Você está usando um estranho bracelete. Pensei que só existisse o meu.
- Alô, Aram - respondeu Ashton. - Parece que está havendo muita coisa de que nenhum de nós está informado. Você já destinou algum trabalho a Tony ou ele ainda está livre?
- Sinto muito. Há um servicinho que o manterá ocupado por algum tempo.
- Não me diga! É na National ou na Tate Gallery? Aram Albenkian alisou o elegante cavanhaque.
- Quem lhe disse isso? - perguntou.
- Ninguém. Mas afinal você é o mais fraudulento marchand do mercado e estou começando a adivinhar o que está se passando. Será que uma morena alta, de excelente aparência, não lhe deu esse bracelete e uma lista cheia de itens?
- Não vejo por que eu devia lhe contar, mas em todo caso a resposta é não. Foi um homem.
Ashton sentiu-se momentaneamente surpreso. Depois deu de ombros.
- Eu devia ter imaginado que havia mais de um deles. Gostaria de saber quem está por trás disso.
- Tem alguma ideia? - indagou cautelosamente Albenkian.
Ashton julgou que valeria a pena ariscar-se a desperdiçar alguma informação para testar as reações do outro.
- É evidente que não estão interessados em dinheiro. Eles têm todo o dinheiro que querem e podem dispor de ainda mais com este aparelho. A mulher que se encontrou comigo disse que era uma colecionadora. Levei a coisa como piada, mas vejo agora que ela estava falando sério.
- Por que eles nos meteram na brincadeira? O que os impediria de fazer todo o trabalho sozinhos? - perguntou Albenkian.
- Talvez tivessem medo. Ou talvez quisessem nosso... ahn... conhecimento especializado. Alguns dos itens da minha lista são muito estranhos. Minha teoria é que são agentes de algum milionário maluco.
O argumento não tinha solidez e Ashton sabia disso. Mas queria ver as brechas que Albenkian tentaria tapar.
- Meu caro Ashton - disse impacientemente o outro, mostrando o pulso. - Como você explica essa coisinha? Não entendo nada de ciência, e mesmo assim sou capaz de enxergar que isso está muito além dos sonhos mais delirantes de nossa tecnologia. De tudo isso, só se pode tirar uma conclusão.
- Diga!
- Que esse pessoal é de... algum outro lugar. Nosso mundo está sendo metódica-te despojado dos seus tesouros. Você conhece toda aquela droga que se lê sobre foguetes e espaçonaves. Bem, já existe quem tenha tornado a coisa realidade.
Ashton não riu. A teoria não era mais fantástica do que os fatos.
- Quem quer que sejam - disse ele -, estão muito bem informados acerca de tudo o que pretendem. Queria saber com quantas equipes estão trabalhando. Aposto que agora mesmo alguém está visitando o Louvre e o Prado. O mundo vai ter um choque antes que o dia de hoje termine.
Despediram-se de modo bem amigável, nem um nem outro confidenciando qualquer detalhe de real importância sobre os respectivos negócios. Por um breve momento, Ashton pensou em aproveitar-se de Tony fazendo-lhe uma contraproposta, mas não havia sentido em hostilizar Albenkian. Buscaria a ajuda de Steve Regan, embora isso significasse ter de caminhar mais de um quilômetro, já que, evidentemente, não era possível utilizar qualquer meio de transporte. Morrería de velhice antes que um ônibus completasse o trajeto. E não estava certo do que aconteceria se tentasse guiar um carro enquanto o campo estivesse acionado. Além disso, fora avisado para não tentar experiência alguma.
Ashton ficou assombrado de que nem mesmo um mentecapto tão particularmente experiente quanto Steve conseguisse aceitar o dínamo com naturalidade. Teria, afinal de contas, de dizer alguma coisa, ainda que provavelmente os quadrinhos fossem a única leitura do outro. Assim, após algumas palavras de explicação grosseiramente simplificada, Steve afivelou um bracelete sobressalente que, para surpresa de Ashton, sua visitante entregara sem comentários. Em seguida, os dois iniciaram a longa caminhada para o museu.
Ashton, ou sua cliente, pensara em tudo. Ele e Steve fizeram uma pausa no banco de um parque para descansar, saborear alguns sanduíches, tomar fôlego. Quando por fim chegaram ao museu, nenhum dos dois se sentia muito esgotado pelo exercício inabitual.
Atravessaram juntos os portões do museu - incapazes, embora não fosse lógico, de falar de outro modo que não em sussurros - e subiram os amplos degraus de pedra do vestíbulo. Ashton conhecia perfeitamente o caminho. Num humor galhofeiro apresentou seu cartão da Sala de Leitura quando, mantendo uma respeitável distância, passou pelos recepcionistas transformados em estátuas. Pareceu-lhe que a maioria dos frequentadores da grande câmara comportavam-se normalmente, como sempre o faziam, mesmo sem o benefício do dínamo.
Coletar os livros indicados na lista era um trabalho simples e mecânico, mas tedioso. Pareciam ter sido escolhidos por sua beleza como obras de arte, tanto quanto pelo conteúdo literário. A seleção fora realizada por alguém que estava por dentro do assunto. Seria um trabalho deles mesmos, Ashton se perguntava, ou teriam subornado alguns especialistas, do mesmo modo como subornaram a ele? Perguntava ainda se conseguiría discernir todas as ramificações da trama.
Na lista havia um número considerável de velhas edições, mas Ashton tomava cuidado para não danificar nenhum livro, mesmo os que não faziam parte do pedido. Sempre que recolhia uma carga razoável de volumes, passava-os a Steve, que os conduzia para o saguão e os amontoava nas lajes do pavimento. Finalmente, uma pequena pirâmide estava formada.
Não importa que eles tenham saído por curtos períodos do campo do dínamo. Ninguém daria importância a uma momentânea vibração de existência no mundo normal.
Ficaram duas horas na biblioteca, fazendo depois uma pausa para outro lanche antes de continuar o serviço. De passagem, Ashton se deteve para uma tarefa um tanto pessoal.
Houve um tilintar de vidro quando a pequenina redoma, posta em solitário esplendor, entregou prodigamente seu tesouro. E assim, o manuscrito de Alice foi depositado em segurança no bolso de Ashton.
Entre as antiguidades, ele não se sentiu inteiramente à vontade. Havia alguns exemplares a serem retirados de cada galeria e, às vezes, era difícil entender as razões da escolha. Parecia - e de novo ele se lembrava das palavras de Albenkian - que essas obras de arte tinham sido selecionadas por alguém que possuía padrões total mente exóticos. Pelo menos desta vez, com umas poucas exceções, obvia mente dei não haviam sido orientados por especialistas.
Pela segunda vez na história, a redoma do Vaso de Portland foi destruída. Em cinco segundos, pensou Ashton, os alarmes estariam ressoando por todo o museu, todo o edifício estaria em alvoroço. Mas em cinco segundos ele poderia estar a quilômetros de distância. Era um pensamento embriagador, e enquanto trabalhava diligentemente para completar o serviço, começou a lamentar o preço que pedira. Mesmo agora, no entanto, ainda não era tarde demais.
Experimentou a serena satisfação do bom trabalhador ao contemplar Steve carregando a grande salva de prata do tesouro Mildenhall para o saguão. A peça foi colocada ao lado da já agora impressionante pilha de objetos.
- Aí está todo o material - disse ele. - Esta noite vou pô-lo em ordem. Agora você tem que se desfazer deste seu bracelete.
Saíram do museu e caminharam até uma rua lateral, escondida, sem pedestres por perto. Ashton desatou a estranha fivela do dínamo de Steve e afastou-se. Deu uma olhada para trás e viu o comparsa enrijecido, congelado naquela imobilidade que o atingira logo que o aparelho fora retirado do seu pulso. Steve estava outra vez vulnerável, movendo-se novamente com todos os outros homens no fluxo do tempo. Mas antes que os alarmes disparassem, ele se teria perdido nas multidões de Londres.
Quando Ashton retornou ao pátio do museu, o tesouro já tinha ido embora. No lugar da pilha de objetos se achava a mulher que o visitara há... há quanto tempo? Mantinha o porte altivo e a elegância, mas, pensou Ashton, parecia um pouco cansada. Aproximou-se para que seu campo pessoal se fundisse com o dela e os dois deixassem de estar separados por um intransponível golfo de silêncio.
- Espero que esteja satisfeita - disse ele. - Como removeu tudo tão depressa?
Ela tocou o bracelete que trazia em seu próprio pulso e deu um pálido sorriso.
- Temos muitos outros poderes além deste.
- Então por que precisaram da minha ajuda?
- Foram razões técnicas. Era necessário separar os objetos que queríamos de qualquer outro material dispensável. Devíamos reunir apenas o que precisávamos para não afetar... como devo chamá-las?... nossas limitadas facilidades de transporte. Agora pode devolver-me o bracelete?
Ashton entregou lentamente o que estivera no pulso de Steve, mas não se deu ao trabalho de desatar o seu. O que estava fazendo podia ser perigoso, mas tencionava escapar ao primeiro indício de uma reação.
- Estou pronto a reduzir meus honorários - disse ele. - Acho até que abriria mão de qualquer pagamento... em troca disso - concluiu apalpando o pulso, onde a complexa peça de metal cintilava à luz do Sol.
Ela olhou-o com uma expressão tão insondável quanto o sorriso da Gioconda... Será que isso, Ashton se perguntou, também tinha ido juntar-se às preciosidades que ele recolhera? Quanta coisa tinham retirado do Louvre?
- Eu não diria que está reduzindo os honorários - afirmou a mulher. - Todo o dinheiro do mundo não poderia comprar um único desses braceletes.
- Ora, as coisas que dei a vocês...
- O senhor é ganancioso, Sr. Ashton. Sabe que com um desses dínamos o mundo inteiro lhe pertencería.
- E que tem isso? Vocês têm algum outro interesse em nosso planeta? Já não tomaram o que queriam?
Houve uma pausa. Depois, inesperada mente, ela sorriu.
- Então achou que eu não pertenço ao seu mundo?
- Sim. E sei que vocês têm outros agentes além de mim. Vieram de Marte ou não vai querer me contar?
- Estou totalmente pronta a esclarecer. Mas é possível que a história não lhe agrade nem um pouco.
Ashton olhou-a desconfiado. O que ela quis dizer com isso? Num movimento automático, escondeu o pulso atrás das costas, protegendo o bracelete.
- Não. Eu não vim de Marte ou de qualquer planeta de que já tenha ouvido falar. Você não entendería o que eu sou. Só lhe direi o seguinte: eu vim do futuro.
- Do futuro? Isso é ridículo!
- É mesmo? Gostaria de saber por quê...
- Se esse tipo de coisa fosse possível, nossa história passada estaria cheia de viajantes no tempo. Além disso, o fato implicaria a reductio ad absurdum. Viajar para o passado podia mudar o presente e provocar paradoxos de toda a espécie.
- São bons argumentos, embora, talvez, nem tão originais quanto você supõe. De qualquer modo, eles só refutam a possibilidade da viagem no tempo em geral, não no caso muito especial que nos interessa agora.
- E o que tem ele de específico? - perguntou Ashton.
- Em ocasiões muito raras, e com o dispêndio de uma quantidade enorme de energia, é possível produzir uma... singularidade no tempo. Durante a fração de segundo em que a singularidade ocorre, o passado torna-se acessível ao futuro, embora apenas de uma maneira limitada. Podemos mandar nossas mentes até vocês, mas não nossos corpos.
- Você quer dizer - revidou Ashton - que o corpo que estou vendo foi tomado de empréstimo?
- Ok, eu paguei por ele, como estou pagando a você. O proprietário concordou com as condições. Somos muito conscienciosos nesses assuntos.
Ashton estava pensando com rapidez. Se a história era verdadeira, ele possuía uma inegável vantagem.
- Quer dizer - continuou - que vocês não têm controle direto sobre a matéria e precisam atuar por intermédio de agentes humanos?
- Sim. Mesmo esses braceletes foram feitos aqui, sob nosso controle mental.
Ela estava esclarecendo muita coisa, com demasiada prontidão, revelando toda a sua fraqueza. Um sinal de alerta estava piscando no fundo da mente de Ashton, mas ele confiava muito profundamente em si mesmo para bater em retirada.
- Está me parecendo - disse pausadamente - que você não pode obrigar-me a entregar este bracelete.
- Isso é perfeitamente correto.
- E isso é tudo o que eu queria saber.
Estava sorrindo para ele naquele momento. Havia alguma coisa naquele sorriso que o fez gelar até a medula.
- Não somos vingativos nem cruéis, Sr. Ashton - disse ela serenamente. - O que vou fazer agora se apoia unicamente em meu senso de justiça. Pois bem: o senhor pediu o bracelete; pode ficar com ele. Mas vou mostrar-lhe exatamente que utilidade terá.
Por um momento, Ashton sentiu um violento impulso para entregar o dínamo. Ela deve ter-lhe adivinhado os pensamentos.
- Não! É tarde demais. Insisto em que fique com ele. E posso tranquilizá-lo num ponto: ele não se estragará; lhe será útil - novamente aquele sorriso enigmático - para o resto de sua vida...
- O senhor se importa se dermos um passeio, Sr. Ashton? Já concluí meu trabalho e gostaria de ter uma última visão de seu mundo antes de abandoná-lo para sempre.
Virou-se e sem esperar pela resposta iniciou, a caminhada para os portões de ferro. Instigado pela curiosidade, Ashton seguiu-a.
Andaram em silêncio até se encontrarem entre o tráfego congelado na Tottenham Court Road. Durante algum tempo, ela contemplou as multidões agitadas, ainda que imóveis. Depois suspirou.
- Não posso deixar de sentir pena deles, e do senhor. Eu me pergunto como teriam se arranjado.
- Que está querendo dizer com isso?
- Ainda agora, Sr. Ashton, o senhor sugeriu que o futuro não pode mergulhar no passado, porque a história seria alterada. Uma objeção inteligente, mas, temo, irrelevante. O senhor vê: o seu mundo não tem mais história para alterar.
Ela apontou para o outro lado da estrada de ferro e Ashton girou prontamente sobre os calcanhares. Não havia nada, exceto um jornaleiro curvando-se ante uma pilha de jornais. Uma manchete estampava a incrível mensagem por entre a brisa que soprava neste mundo sem movimento. Ashton leu com dificuldade as palavras rudemente impressas:
SUPERBOMBA: TESTE HOJE
A voz em seus ouvidos parecia vir de muito longe.
- Eu lhe disse que a viagem no tempo, mesmo nesta forma limitada, requer um enorme dispêndio de energia; muito mais do que uma simples bomba pode liberar, Sr. Ashton. Mas aquela bomba é somente um estopim...
Ela apontou para a solidez do chão sob os pés.
- O senhor sabe alguma coisa sobre o seu próprio planeta? Provavelmente não; sua espécie aprendeu muito pouco. Mas até os seus cientistas já descobriram que, duas mil milhas abaixo, a Terra tem um núcleo líquido, mas muito denso. Este núcleo é formado de matéria comprimida que pode existir em qualquer um dos dois estados estáveis. Dado um certo estímulo, pode passar de um desses estados para o outro, assim como uma gangorra pode tombar ao toque de um dedo. Mas essa mudança, Sr. Ashton, irá liberar tanta energia quanto todos os terremotos desde o começo do seu mundo. Os oceanos e continentes se partirão em pedaços e serão lançados no espaço; o sol terá um segundo cinturão de asteróides. Os ecos desse cataclismo repercutirão através das idades e vão nos abrir uma fração de segundo em sua época. Durante esse instante, então, estamos procurando salvar tudo o que podemos dentre os tesouros do seu mundo. Mais não podemos fazer; mesmo se as suas motivações foram puramente egoístas e completamente desonestas, o senhor prestou à sua espécie um serviço que nunca lhe passou pela cabeça.. . Agora, tenho de retornar à nave, pois quase há cem mil anos a contar daqui as ruínas da Terra são esperadas. Pode guardar o bracelete.
A partida foi instantânea. A mulher se enrijeceu de repente, tornando-se idêntica às outras estátuas na rua em silêncio. Ele estava sozinho.
Sozinho Ashton ficou segurando o bracelete reluzente diante dos olhos, hipnotizado por sua intrincada mão-de-obra e pelos poderes que ocultava. Fizera uma barganha, tinha de lhe ser fiel. Podia sobreviver a toda a extensão de sua vida - à custa de um isolamento que nenhum outro homem jamais conhecera. Se desligasse o campo magnético, os últimos segundos da história soariam implacavelmente pela última vez.
Segundos? Na verdade, era menos tempo que isso. Pois ele entendeu que a bomba já devia ter explodido.
Sentou-se no meio-fio e começou a pensar. Não era preciso entrar em pânico; tinha de encarar as coisas calmamente, sem histeria. Afinai, ele tinha muito tempo.
Todo o tempo do mundo.